Numa pacata noite da semana que decorre, uns minutos de "zapping" proporcionaram-me um momento televisivo tão agradável como já não tinha há muito tempo (se exceptuarmos os jogos de futebol). Surge no ecrã um rapaz com uns certos ares de rebelde (não muitos), de livro na mão, a declamar palavras familiares: "Vem por aqui - dizem-me alguns com olhos doces...".
Assim se iniciam os breves minutos de televisão ao longo dos quais o rapaz, de seu nome Marco D'Almeida (este "D" com apóstrofe eleva-o a outro patamar, automaticamente. Senão tinha nome de jogador de futebol.), percorre os versos de um poema brilhante e cativante da autoria de José Maria dos Reis Pereira, conhecido no mundo literário como José Régio.
A minha surpresa vem de, entre publicidades a detergentes e pensos higiénicos, intercalados com uns momentos emocionantes da novela da noite que serão transitidos mais logo, surgir este luvável momento de televisão. Raro, muito raro. Mas com um formato original, cativante e de grande utilidade cultural.
Não sei quanto a vocês, mas eu prefiro "receber cultura" de um desconhecido que surge numas ruinas de um monumento a declamar poesia, do que aguentar o suplício de uma
barbie casada com um ex-ministro da cultura a fazer perguntas sem interesse a alguém que nunca vimos nem ouvimos falar acerca de um assunto que não nos diz nada, a um ritmo tal que a retoma da economia nacional nos parece correr como o Obikwelu.
Aqui fica o
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos, como farrapos,
Arrastar os pés sangrentos, a ir por aí...
Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí.
José Régio
2 Comments:
Vi este poema ser discertado pelo "Tiago" da "baia das mulheres" se não me engano no canal 1.
Espetacular, é apenas o que digo deste emaranhado de palavras.
Muito bem...
Bom, não sei se era o tal Tiago da Baía das Mulheres, mas que foi um bom momento de televisão, foi.
O que, na televisão portuguesa, é raro.
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